O dia em que eu morri amanheceu ensolarado. Na verdade, fazia tempos que eu não via um sábado tão ensolarado como aquele. E como você bem sabe, uma vez que é meu melhor amigo, meus sábados não vinham sendo nada ensolarados. Nem meus sábados, nem meus domingos, nem meus dias da semana. Nada estava mais tendo sentido para mim. Os meus últimos meses de vida tinham servido apenas e tão-somente para colecionar derrotas e insatisfações. Nenhum momento feliz, nenhum momento de prazer, todas as paixões perdidas, nenhuma novidade, nenhuma surpresa, apenas o cotidiano e sua monotonia torturante. Porém, restavam as lembranças...a boa infância quando nos conhecemos - faz tempo, não? - Brincávamos aquelas boas brincadeiras de crianças mas já jogávamos video game também. Íamos à escola juntos, caíamos sempre nas mesmas salas, sempre tirávamos boas notas, embora muita gente me achasse mais inteligente que você - gozado - eu sempre achava o contrário... As paixões vieram também, mas você sempre deu mais sorte que eu - suas paixões sempre se concretizaram - mesmo assim, acho que eu soube gostar de alguém. E, por falar em lembranças, hoje faz exatamente um ano que eu morri. Soam nítidos aos meus ouvidos os comentários das pessoas em torno do meu caixão...."Puxa vida, tão novo, por que fez isso com sua vida?"Que morte horrível, atirar-se do vigésimo andar!" "Ah se ele soubesse, eu o amava tanto", "Vai fazer falta..." "Um artista tão talentoso, tão cheio de dons, tantos projetos em mente..."
Realmente, eu tinha muitos projetos em mente, mas foi apenas uma conjetura da pessoa no dia do meu velório, pois, na verdade, só eu e você sabíamos desses planos de trabalho.
Voltando às lembranças...minha família...os almoços de domingo...as viagens em família...depois as separações necessárias...as mortes necessárias...as paixões já raras...e a nossa amizade sobreviveu a tudo isso! E voltando ao meu derradeiro sábado, como eu já disse, o dia amanheceu ensolarado e eu, acredite (sim, você acredita, você sabe), eu amanheci feliz!! Pudera, eu sabia que aquele seria um dia especial para mim, um dia memorável, como realmente foi. Estava tudo planejado, tudo já arquitetado...Você se lembra do meu sorriso radiante ao lhe abrir a porta do apartamento naquela manhã? Só com você eu posso compartilhar minhas alegrias, acho que sempre foi assim...Dos meus últimos momentos, se eu me lembro?Sim, lembro bem do meu salto na janela do apartamento, a queda... meu corpo estendido no chão, lá embaixo,eu caí com os braços estendidos, meus olhos abertos... estou ouvindo nitidamente os gritos de horror das pessoas: "Chamem uma ambulância!!!", "Socorro!!!", "Um rapaz caiu do prédio!!!", "Não, ele não caiu, ele se jogou!!!" mas antes disso, preciso cumprimentá-lo pelo seu sucesso ao longo desse ano que passou. Aliás, passou rápido, hein? E quantos progressos em sua vida profissional.. todos os planos que você colocou em prática, tudo tão com a sua cara, como as pessoas dizem sempre...Sabe, eu me lembro bem do impacto que a minha morte causou em você, principalmente no meu velório e no meu enterro, aliás, você estava mais elegante que eu, desesperado mas sóbrio...você queria consolar minha mãe, mas ao final ela é quem lhe consolava...uma mãe ganhava um novo filho, um filho ganhava uma nova mãe ...
Meus últimos momentos??? Isso é segredo, como tantos que compartilhamos ao longo dessa tão sólida amizade que construímos... Mas tudo bem, vamos ao gran finale, embora eu só me lembre exatamente de ter ido abrir a janela e ajeitar as cortinas... você tinha descido para comprar cigarros, esse seu vício ainda vai te matar, meu amigo, eu não canso de dizer, eu estava indo abrir a janela da sala e escutei um barulho, é o vento que bateu a porta, pensei, você sempre foi meio desligado, deve ter deixado a porta só encostada...e de repente, eu lá em cima ajeitando as cortinas, uma pressão... nas minhas costas....fique tranquilo, meu querido amigo. Mais um segredo nosso que será guardado para sempre. Prometo que nunca contarei a ninguém que foi você quem me matou.